Nos países desenvolvidos, o número de crianças afectadas pelo autismo, ou pelas doenças do espectro do autismo, aumentou, segundo as diversas fontes, entre três a dez vezes nas duas últimas décadas.
De causa desconhecida, estas perturbações comprometem de forma profunda a capacidade cognitiva e o desenvolvimento comportamental das crianças, assumem um largo espectro de variantes e parecem englobar alterações da fisiologia de vários sistemas orgânicos, sendo as cerebrais as mais claramente evidentes.
Enquanto a ciência não for capaz de esclarecer a(s) causa(s) desta patologia, somos obrigados a admitir que ela possa estar relacionada com algumas características da vida das nossas sociedades, a que organismos especialmente sensíveis, ou reactivos, ou com determinado perfil genético respondam de forma inusual e inadequada, comprometendo o equilíbrio físico, mental, psicológico e relacional.
Enquanto a ciência não for capaz de esclarecer a(s) causa(s) desta patologia devemos valorizar as múltiplas alterações objectivas e quantificáveis, desde metabólicas a imunitárias, comuns à maioria das crianças com doenças do espectro do autismo, como devemos tentar corrigi-las e compensá-las, por todos os meios ao nosso alcance, por forma se não a tratar, pelo menos a minorar as graves perturbações que caracterizam estas doenças.
De facto, de acordo com vários autores, fundamentados numa já expressiva quantidade de trabalhos científicos publicados em revistas de referência, e fazendo eco dos resultados clínicos de equipas multidisciplinares com ampla experiência nesta patologia, algumas das quais são referidas por Jaem Macarty, é possível identificar, nestas crianças, múltiplas alterações patológicas, para além das mentais, e obter diferentes graus de recuperação, de incipientes a muito satisfatórios, dependendo tanto da resposta individual como da possibilidade de recuperação metabólica ou funcional orgânica.
Façamos um percurso, necessária mente sucinto, pelas mais relevantes.
Stress oxidativo. Uma parte do oxigénio que respiramos dá origem a radicais livres de oxigénio. Estes átomos são quimicamente muito instáveis e, por isso, muito agressivos para as várias estruturas das células, perturbando diversas das suas funções. Usamos os radicais livres de oxigénio para destruirmos células anormais ou microrganismos. As nossas células saudáveis estão equipadas com um escudo de defesa face aos radicais livres de oxigénio, denominado “capacidade biológica antioxidante”, constituído por minerais, vitaminas, enzimas e outros compostos bioquímicos complexos. O desequilíbrio entre a produção de radicais livres de oxigénio e a capacidade biológica antioxidante dá origem ao stress oxidativo. Nas crianças autistas encontramos, habitualmente, elevadíssimos níveis de stress oxidativo por deficiente capacidade biológica antioxidante. Para isso muito contribui o acentuado deficit de glutationa, a mais importante enzima antioxidante, e que, nestas crianças, contribui para agravar a falta de metilação.
As células cerebrais, dada a sua constituição em elevada quantidade de gordura, são especialmente sensíveis e vulneráveis à agressão do stress oxidativo. O tratamento consiste na criteriosa suplementação com substâncias antioxidantes.
Metilação. A metilação é um processo bioquímico de fundamental importância para o bom funcionamento orgânico e está implicada em milhares de reacções por segundo. Bioquimicamente consiste na troca de grupos metil entre vários compostos químicos. A metilação é indispensável para formar neurotransmissores e substâncias constituintes das estruturas cerebrais, como são exemplo os fosfolípidos das estruturas neurológicas. Da disponibilidade bioquímica de metilação depende, pois, o bom desempenho cognitivo, a capacidade de memória, de concentração, de resistência ao stress e a rapidez de resposta a estímulos. A disponibilidade bioquímica de metilação pode ser medida pelo nível plasmático de homocisteína. Este composto é tanto mais abundante quanto mais deficiente seja a metilação. As crianças autistas apresentam muito frequentemente níveis de homocisteína muito elevados. Nesse caso, está indicada a suplementação com substâncias dadoras de grupos metil possibilitando a melhoria do trabalho cerebral.
Alimentação. Apesar de continuar a ser motivo de acaloradas discussões entre os especialistas, parece, no entanto, estabelecido que os alimentos e a reacção pessoal aos alimentos podem ser um motivo de agravamento, ou possibilidade de melhoria, das manifestações do autismo, por várias razões.
Os alimentos podem ser uma causa de reactividade imunológica retardada com repercussões sistémicas de alcance ainda não totalmente avaliado. Este tipo de reactividade pessoal estará envolvido no desencadear, na manutenção ou no agravamento dos processos inflamatórios a que não será estranha a inflamação cerebral e com ela a dificuldade de desempenho das várias funções cerebrais. Dependendo também da capacidade enzimática digestiva e do equilíbrio da flora intestinal, os alimentos podem iniciar e manter uma maior ou menor inflamação da mucosa intestinal e estarem, assim, na génese de mais graves perturbações inflamatórias sistémicas que, a nível cerebral, pode estar implicada em vários distúrbios cognitivos da maior gravidade.
Por outro lado, as dificuldades digestivas de alguns alimentos, com destaque para o glúten e a caseína, explicam a base bioquímica para alterações de comportamento e de sensibilidade comuns nos autistas. A digestão incompleta do glúten (presente em diferentes cereais, mas em especial no trigo) e da caseína (presente no leite e lacticínios) condiciona a formação de moléculas semelhantes a morfina (gluteomorfina e caseomorfina, respectivamente) cuja absorção condiciona uma alteração significativa do comportamento e da tolerância à dor física. Estas moléculas, com efeito semelhante à morfina, desencadeiam comportamentos de “adito” (dependência física cerebral) que podem estar associados aos traços obcessivo-compulsivos do comportamento alimentar descritos em muitas crianças autistas. As dificuldades digestivas e as consequentes alterações de cadeias metabólicas perecem estar presentes num maior número de outros alimentos, em que se integram a maçã e o ketchup.
Desnutrição. As múltiplas dificuldades digestivas associadas às graves alterações do comportamento e do relacionamento que caracterizam as crianças autistas podem justificar, pelo menos em parte, a grave deficiência em nutrientes que é frequente nos exames laboratoriais destas crianças. Os autores realçam a falta de vitaminas do complexo B, com ênfase para a vitamina B6, de vitamina C, de zinco e de magnésio. Há, no entanto, dois nutrientes que devem ser destacados pela importância que assumem nas perturbações do espectro do autismo. A vitamina A e os ácidos gordos ómega 3.
A vitamina A é um nutriente indispensável para uma boa capacidade visual. É característica comum aos autistas não serem capazes de manter o contacto visual. A deficiência muito marcada em vitamina A parece ser a razão das graves deficiências visuais dos autistas, limitando-os a ver só preto, branco e cinzento, impossibilitando-lhes a percepção da tridimensionalidade e dificultando a visão central.
Os ácidos gordos essenciais ómega 3 são um nutriente cujo aporte pela cadeia alimentar está substancialmente diminuído de uma forma generalizada como consequência dos processos agro-industriais de produção alimentar moderna. Da correcta quantidade de ácidos gordos ómega 3 dependem, entre outras, a modulação da inflamação sistémica e a capacidade da membrana celular responder aos mediadores (hormonais, neurotransmissores, imunitários) que a mantêm em comunicação com todo o organismo e da qual depende a sua capacidade funcional. Mais do que em qualquer outras, o bom desempenho das células cerebrais está estreitamente relacionado com o teor corporal em ácidos gordos ómega 3, e deste dependem a generalidade das capacidades cognitivas e psíquicas.
Perante a evidência laboratorial de deficiências nutricionais, uma correcta e optimizada reposição nutricional adaptada a cada doente, pode oferecer uma ajuda significativa na melhoria das perturbações do espectro do autismo.
Desequilíbrio da flora intestinal. A flora intestinal é constituída por milhões de bactérias de dezenas de variedades. Do equilíbrio entre todas elas depende, em boa parte, a integridade da mucosa intestinal, a qualidade do processo digestivo, a capacidade de absorção dos nutrientes bem como a tolerância do sistema imunitário aos alimentos ingeridos e a eficácia na sua resposta a agressões externas. Qualquer alteração do equilíbrio da flora intestinal pode ter um efeito muito marcado em todos estes campos de acção. A toma repetida de antibióticos é o principal factor de alteração da flora intestinal permitindo o desenvolvimento anormal de alguns microrganismos. Nos autistas é muito frequente encontrarmos uma proliferação de Cândida Albicans. Esta levedura é responsável pela produção de substâncias neurotóxicas que podem assumir um papel especialmente nefasto para o sistema neurológico nos autistas. Perante este diagnóstico laboratorial deverá ser instituído o tratamento médico adequado que pode trazer acentuados benefícios para a criança autista.
Intoxicação / Desintoxicação. A manutenção da nossa saúde física e mental depende, em grande medida, da capacidade hepática de eliminação das substâncias tóxicas que invadem, permanentemente, o nosso organismo. Uma deficiente capacidade de desintoxicação hepática conduz à acumulação progressiva de tóxicos que constituem um factor de perturbação, por vezes muito grave, de múltiplas cadeias metabólicas e se traduz numa deficiente capacidade de funcionamento de órgãos e sistemas, com especial relevo para o cérebro. As substâncias tóxicas incluem os corantes, conservantes e aditivos alimentares, metais e derivados dos plásticos, medicamentos e cosméticos, numa palavra, todas as substâncias que penetrem no nosso organismo e não façam parte da sua normal constituição. As crianças autistas parecem ser especialmente vulneráveis neste binómio intoxicação / desintoxicação. Com muita frequência é possível diagnosticar níveis tóxicos, muito elevados, de mercúrio, alumínio, níquel e chumbo, bem como uma resposta exagerada à acção de alguns aditivos alimentares.
Reacções imunitárias desajustadas. O nosso sistema imunitário tem como função reagir e, se possível, combater a presença de bactérias, vírus ou outros microrganismos estranhos ao nosso corpo. Acontece, porém, que nalgumas pessoas o sistema imunitário passa a reagir de uma forma exagerada a substâncias químicas ou a partículas de bactérias e mantêm essa reactividade prolongadamente o que se torna factor de perturbação grave do funcionamento de órgãos e sistemas. Nas crianças autistas têm sido encontradas, em análises laboratoriais, reacções imunitárias a substâncias usadas como estimulantes do efeito das vacinas o que poderá explicar a associação cronológica estabelecida, por muitos pais, entre a toma de algumas vacinas e o aparecimento ou o agravamento dos sintomas do autismo.
Por outro lado, há autores que têm chamado a atenção para a possibilidade de muitas das alterações cerebrais e neurológicas do espectro do autismo poderem dever-se a uma reacção imunitária exagerada e desajustada a infecções por bactérias da família dos Estreptococcus.
Permanecendo um grande mistério, as doenças do espectro do autismo, com a sua paleta de mil cores e tantos cambiantes quantas as crianças autistas, mais parecem ser um puzzle intrincado onde se interligam causas ambientais, tóxicas, alimentares, metabólicas, imunológicas e genéticas, em que cada doente é, ainda mais do que em qualquer outra doença, uma situação clínica singular, a requerer uma interpretação de multicausalidade e uma abordagem terapêutica individualizada de matriz funcional.
As doenças do espectro do autismo passaram, em vinte anos, de uma vivência dramática isolada a ser um drama de expressão social.
No tempo em que vivemos, a informação corre à velocidade da luz nas bandas largas da web, multiplicam-se os sites e os blogues, a distância já não retarda a chegada de notícias e o conhecimento deixou de ser apenas de acesso restrito a uma elite de especialistas. A esta elite pede-se, agora, a difícil tarefa de orientar o cidadão perdido num oceano de informação, quantas vezes pouco fiável, de esclarecer mil e uma dúvidas suscitadas em noites perdidas de «navegação», de saber lidar com o confronto de ideais acalorado pela angústia de quantas perguntas que ficam, afinal e sempre, por responder, de ter a humildade de reconhecer o quanto nos falta a todos ainda conhecer, de ser capaz de decidir com a autoridade que a sabedoria confere e ter a flexibilidade dos rios que, partindo do alto da montanha, vão contornando penedos, acelerando em ravinas, deslizando em planícies sem nunca perder de vista que o seu destino é abraçar o mar.
Cristina Sales
Médica
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