Em Setembro de 2005 a Maria João Amorim da Revista Pais e Filhos colocou-me o desafio como educadora de infância face às questões da transição para o 1º Ciclo. Em época de transições e face a algumas angústias recentes colocadas por pais, aqui ficam as questões colocadas na época e as respectivas respostas que dei e que mantenho.
1) Qual a principal mudança do pré-escolar para o primeiro ciclo?
-O pré-escolar é o alicerce fundamental da aprendizagem. Neste patamar as aquisições das áreas do desenvolvimento (motricidade, socialização, linguagem compreensiva e expressiva, autonomia e cognição) constituem as competências essenciais para a transição ao 1.º ciclo.
Na fase do pré-escolar o conhecimento, para além do uso das competências faz-se a partir do questionamento do real, de uma forma lúdica com práticas educativas que tenham sentido e que partem dos interesses manifestados pelas crianças.
A passagem ao 1. Ciclo é sempre momento de ansiedade, normalmente mais vivida pelos pais, porque caracterizam esta fase da criança como uma transição do lúdico ao trabalho (no 1. Ciclo ouvimos sempre a expressão “ agora é que é a sério.”). Contudo, é mais uma fase de promoção na vida da criança que não deve constituir factor de stress acrescido e ser encarado como um percurso de desenvolvimento. A escola do 1. Ciclo constitui uma instituição de ensino, num conjunto de contextos de socialização relacionados com as aprendizagens formais.
Porém é necessário ter em conta que as práticas realizadas no ambiente educativo e/ou escolar não devem ter como principal objectivo práticas realizadas em função das orientações e/ou currículos, mas sim as necessidades de cada criança, atendendo a que cada uma é um ser com necessidades especificas e diferenciadas, dando deste modo significado e sentido às aprendizagens das crianças.
2) Nem todas as crianças reagem da mesma maneira e há que dar tempo para que elas se consigam adaptar a esta nova vida, mas deverei preocupar-me se, ao fim de 3 semanas ou um mês, o meu filho continuar muito angustiado e com dificuldades de adaptação?
-As crianças são por natureza facilmente sociáveis e estabelecer novas amizades não constituirá por si um problema. Os pais devem transmitir aos filhos segurança, constituindo a família uma referência, se os pais se revelam ansiosos transmitirão essa ansiedade aos filhos. Estes, não podem nunca sentirem-se abandonados e é importante que mesmo com choros ou birras os pais se separem dos filhos dizendo que voltam para os virem buscar.
O diálogo com o(a) professor(a) é fundamental para que nesta parceria haja lugar para reflexão sobre estas transições na vida da criança.
3) O meu filho vai para uma escola onde não conhece ninguém. Que posso fazer para facilitar a integração?
-Como qualquer um de nós perante situações novas, ficamos um pouco mais ansiosos, é natural que de inicio a criança estranhe um pouco. No entanto, as crianças estabelecem rapidamente e sem problemas novas amizades. O receio inicial pode ser facilitado pelos pais ao explicarem que vão encontrar outras pessoas com quem vão partilhar momentos bem divertidos. Para além do mais são essas emoções que nos fazem crescer enquanto pessoas e que nos impulsiona a agir e a estabelecer interacções com os outros. É importante que a criança se sinta aceite no grupo onde se insere e uma vez mais a necessidade do diálogo com o(a) professor(a) é fundamental.
4) Apesar de o meu filho ter apenas 6 anos, pergunto-me: será que ele vai corresponder às minhas expectativas de ser um bom aluno?
-Os pais desejam sempre o melhor para os seus filhos. Porém, as expectativas que os pais colocam nos filhos pode ser condicionante no seu desempenho, mas com efeito oposto, principalmente se são pais com altos níveis de exigência. Há que também ter algum cuidado com o que consideramos “ser um bom aluno”. Essencialmente é importante que a criança sinta prazer na aprendizagem e que esta lhe faça sentido. Para além do saber fazer, do ser capaz de…, é fundamental atribuirmos tributo a pequenos “grandes” sucessos de modo a valorizar as competências da criança, através das quais se relaciona com o que a rodeia, até porque os pais são o modelo de como encaram a aprendizagem e que valor lhe atribuem.
Se os pais têm dúvidas face às aprendizagens, é importante também questionar como foi o desempenho no pré-escolar? A parceria entre docentes dos dois ciclos é crucial no sentido de se detectarem eventuais dificuldades que detectadas precocemente podem ser facilmente superadas. O afecto, a compreensão e o acompanhamento dos pais no processo educativo dos respectivos filhos são situações que vinculam e que reforçam os laços familiares. O afecto na relação pedagógica é fundamental também na figura do professor, atendendo a que a criação desta relação passa também pelo modo como o professor interage com a criança, que deve ser coerente nas suas atitudes e no modelo pedagógico que adopta.
-Eduardo Sá (2000) num livro (que recomendo desde já) e que se chama “Crianças para sempre” refere:
“Os bebés já nascem a ler. Lêem os olhos das pessoas, lêem os gestos, as hesitações, e as paixões. Para os bebés, primeiro interpreta-se, só depois se lê. Ao contrário do que se passa com muitos adultos, (...)...para os bebés ler é interpretar."
Isto significa que as crianças fazem desde cedo as suas leituras, e quando as crianças chegam ao 1. Ciclo sabem sempre qualquer coisa sobre a linguagem escrita ou como ela funciona e para que é utilizada. Apropriam-se de códigos da linguagem escrita, reconhecem marcas de produtos, de carros, de sinais, fazem a sua leitura do mundo que as rodeia.
A natureza e a qualidade das experiências precoces com a linguagem escrita, assim como, o trabalho individual que cada criança desenvolve segundo os seus esquemas conceptuais, terá como consequência, o surgir de muitos níveis diferentes de competências.
A escola do 1. Ciclo constitui uma instituição formal de ensino, num conjunto de contextos de socialização relacionados com a leitura e escrita. Os aspectos convencionais de aprendizagem da leitura e escrita envolvem um reconhecimento de comportamentos progressivamente observados (existência de espaços entre as palavras, sentido esquerda/direita, de baixo para cima...).
Há que aproveitar todas as possibilidades de abordagem de leitura e escrita que a criança conhece e proporcionar que descubra outras, de forma espontânea, sem que haja a perda de espontaneidade o que acontece, por vezes, face ao treino repetitivo e exaustivo de textos sem sentido real e vivido pela própria criança, bem como a nível do pré-escolar, o uso exagerado de actividades de grafismos adoptadas de manuais comercializados, correndo o risco de institucionalizarmos as actividades de jardim-de-infância com actividades sem sentido para a criança.
Não basta que a criança imite o adulto, é importante que ela, no seu relacionamento com o que a rodeia, se vá apercebendo das diferentes características que experimente e construa progressivamente o seu conhecimento.
A criança apreende o que a rodeia, através da manipulação e deve fazê-lo no acto da escrita e leitura. Manusear letras de diversos materiais, mexer-lhes, virá-las, agrupá-las, colocá-las em diversas posições, explorar diferenças e semelhanças, transformá-las e agir sobre elas – experiências acompanhadas pelo adulto mediador, no sentido de "ler" esses saberes e possíveis construções de palavras, valorizando essas relações com o mundo da escrita.
Se a criança desde cedo tiver contacto com os livros, mais depressa desenvolve capacidades linguísticas, com um código elaborado e um vocabulário extenso. Mais eficazmente se processa a aprendizagem da leitura e da escrita. É um processo que resulta de milhares de interacções com o mundo da escrita, das imagens e dos sons.
A estimulação começa no berço e depende de todos os agentes educativos envolvidos na educação de cada criança.
É importante que os pais reconheçam toda a aprendizagem como um todo, proporcionado situações diversas, ricas e estimulantes, de modo a proporcionar às crianças fontes de aprendizagem. Devem estar sensibilizados para a importância de brincar com a leitura e escrita em todo o processo, proporcionando oportunidades de brincar escrevendo e escrever brincando, pois normalmente essa aprendizagem acontece em ambientes demasiado formais e desprovidos de sentido para a criança. Deste modo é pouco provável que a criança chegue ao fim do primeiro ano sem saber ler na acepção da palavra. No entanto, cada caso é um caso e se os pais se sentem preocupados nesse sentido devem falar com o(a) professor(a) respectivo(a), de modo a esclarecer dúvidas, até porque uma boa relação entre pais e escola é fundamental para o desenvolvimento da criança.
6) É importante criar já hábitos de responsabilidade e estudo, como os TPC?
-Desde cedo que a criança deve ter hábitos de responsabilidade que constituem um factor de autonomia na vida da criança. Hábitos de rotina de vida diária em que a criança cresce com o sentido da responsabilidade.
A questão dos TPC é uma questão polémica que não deixa ninguém indiferente. Porém trata-se de uma questão de bom senso, principalmente por parte dos professores no que determinam como TPC. Se mais do mesmo, sem qualquer sentido para a criança ou se escolhas mais divergentes com oportunidade de escolha para as crianças, dotando desta forma a escola como agente de práticas activas e dinâmicas entre os intervenientes. De salientar práticas muito interessantes em algumas escolas, onde existem espaços de pesquisa, facultando aos pais estratégias, de modo a acompanharem a integração dos conhecimentos dos seus educandos. Testemunhos dessas práticas promovem diálogos mais activos e permanentes entre os actores educativos, nos quais se inclui obviamente o papel fundamental dos pais neste processo.
-Fazendo parte de um processo na vida da criança as alterações só devem acontecer se fizerem sentido para pais e filhos que as considerem realmente necessárias para algum ajustamento.
Por exemplo, hábitos de rotina como a ida para a cama ou espaço para discutirem as vivências diárias devem ser rotinas aplicáveis desde sempre e não só a partir desta fase. Contudo cada família encontrará a solução mais adequada às suas necessidades, onde, como tudo na vida impera o bom senso.
8) É no primeiro ano que se lançam as bases do sucesso escolar?
-Eu diria que o sucesso escolar inicia-se no berço, na qualidade de interacções que se estabelece com a criança, nas oportunidades que se oferecem à criança, no que ouve, no que vê, no que mexe e experimenta. O jardim-de-infância é por excelência, um espaço privilegiado de relação e constitui o patamar da educação básica.
A criança, não aprende só pelos conhecimentos que lhe são formalmente transmitidos, assim como tem um papel activo e participante, num meio em que o conhecimento é um instrumento cultural. Tal como observa e pensa sobre muitos aspectos do meio envolvente, também sobre o que aprende ela observa e reflecte, tentando resolver muitos problemas de natureza lógica com que se depara.
O papel dos professores também é fundamental pela mais valia que acrescentam ao contexto educativo. São os responsáveis por estar atentos a cada criança, com as suas capacidades e dificuldades, apelando-se assim a que os professores sejam capazes de proporcionar uma pedagogia diferenciada com oportunidades educativas diversas e mais ricas. Ninguém ensina nada a ninguém se o indivíduo não estiver receptivo à aprendizagem, cabendo ao professor a tarefa de uma adequada organização do ambiente educativo.
in: Revista Pais e Filhos – nº 76 – Setembro 2005.
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